* Por Andrea del Fuego *

Pêlo longo, olhos vermelhos e a fêmea primordial, eu e ela na mesma tapeçaria. Quem pode com isso? Talvez o marido da Tamara de Lempicka. Mas ele morreu, a Tamara morreu, o talco fúnebre jogado no México, dentro do vulcão. Depois dela, ninguém me olhou tanto. Quando vinha sozinha chorava porque eu não existia. Secava a lágrima e ajeitava a casquete. Queria ser eu, um unicórnio de crina sedosa.

Um dia apareceu um estudante vestindo bege. Ficou sentado na minha frente sem me dirigir os olhos. Anotava num caderno qualquer coisa que começava com “chapéu”. É isso. Prefere a cabeça coberta, escondendo a hipófise e o hipotálamo. Grande coisa, perfuro qualquer fronte.

Pudesse enrolava o cadáver de Tamara, eu, esse tapete pesado. Mas a quiseram cremada. Toparia arder com ela, ir primeiro sendo a casca, queria contar que o marido cochichou serenata no ouvido de outra aqui no museu. Diria tudo enquanto acendiam a pira. Que saíram sorridentes, que a moça esqueceu o cachecol em cima do banco.

Tamara quando vinha sem ele, vinha só. Não me traía nem com o amante, que ela deixava onde se deve, na alcova sem quadros nem outra distração. Cortina e assoalho é do que ela gosta, o que não quebra não pede acolchoado.

Deitada no meu felpo ia amar com cócega, seguiria o corpo dela e do homem que escolhesse pela sala, iríamos os três pela madeira encerada até que uma parede nos escorasse. Depois ela montava o cavalete e deixava as tintas pingarem.

Estendam-me onde o homem pisa que saio do tear, me tire da parede, do museu, tire essa gente me anotando. No piso caem gotas de vinho do terceiro copo. Cinzas da cigarrilha, polvilho das senhoras, fios de cabelo. Cansei da cor, quero sardas tintas, que caiam os restos sejam eles quaisquer, da veia ou da uva. Estivesse eu no chão, ela levantava minha ponta e com o pé empurrava o ódio por baixo.

Lá vem a funcionária, apagar a última lâmpada. Sorrio sempre, procuro disfarçar. Sou o unicórnio do tapete medieval. Nas costas, entre meu sizal e a parede há uma carta, Tamara quem deixou. Borrifou água de laranja e no sono do guarda botou o envelope atrás de mim. A carta foi escorregando, agora está sob as patas, onde é lugar de amor assim.

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Andrea del Fuego é escritora, autora de vários livros, entre eles, Os Malaquias, ganhador do Prêmio José Saramago há 5 anos

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