guerra, 33, vinte de estrada
o segredo
é o cochilo depois do rebite
você toma
de preferência com a janta
e vai dormir logo em seguida
depois de duas horas o corpo acelera
o ponteiro bate lá na direita
e aí,
meu amigo,
é só estrada
mão couro volante
pé pistão acelerador
nesse voo
rebitado
você faz coisas que até deus desacredita
peso em duas rodas
ultrapassagens no gato vermelho
curva
motoqueiro
velhinha
é quando começam as alucinações
mesmo com os olhos querendo mais
fome de linhas amarelas e brancas
dançando no asfalto
é bom dar um
res
pi
ro
tomar leite quente
cortar o efeito
jantar
depois já entendeu, né?
rebite
cochilo
chave
ronco
poeira
gato
velhinhas
já fiz juazeiro-são paulo
em 36 horas
2.200 km
minha mulher até deu festa quando cheguei em casa
meu chefe deu um sorriso
e uma nova encomenda
daquela vez pro norte
oito dias de BR e terra até santarém
e mais balsa para manaus
:
pranchão de madeira
com floresta dos dois lados
e oito ou dez caminhões em cima
é bom para descansar
fazer comida sossegado na boleia
fora as meninas
que sobem logo no começo
R$ 30 a hora e nem um centavo a menos
a maioria já meio passada
tribo de maracujás
mas é monopólio, né?
não tem jeito
todo mundo come
só precisa ficar esperto
pra não mostrar que tem dinheiro
ou carga valiosa
senão elas chamam os piratas
e, aí, para onde você vai correr?
quer se jogar no rio
com piranha e jacaré?
mas meu maior medo não é esse
nem a morte
já vi muito amigo cair na próxima curva
olhos estourados de rebite
parada cardíaca
última garfada de feijão com farofa
depois de um bocejo
meio do sertanejo
entrada de cidadezinha
pá
não existe mais
sem entrega
doze marchas
borracha gasta de pneu
morro de medo mesmo é de ficar acordado
as pernas tremem a cada início de janta
na hora do pai nosso
e do comprimido
só de pensar que meus cílios não vão se encontrar
dormir é uma benção
que tiram de mim
sabe o que é passar
uma semana desperto
com saudades da mulher
e ver o sorriso dela
em cada pulo do velocímetro?
sentir o perfume
que comprei de aniversário
em toda coxa de puta
que deita no colchão magro
em cima do sistema de suspensão
e enquanto gozo
ouvir
no gemido de outra
minha preta pedindo mil vezes
para comprar um novo divã
e não piorar minhas dores nas costas?
sabe o que é ver seus cachos morenos
em todas as barracas de fruta de acostamento?
a cada atendente de pedágio
em todo centímetro de rua
no último volume do rádio
nas placas de velocidade
no carro indo para a praia
nas luzes do painel
nos mosquitos do para-brisa
nos muros pichados
no reflexo dos óculos
na rachadura do retrovisor
na espuma saindo do banco
no letreiro de motel
e não poder dormir para esquecer?
*
lúcia, 51, canhota
a morte do meu pai
é minha lembrança mais bonita
estávamos nós quatro na cozinha
eu
mamãe
vó marta
e meu irmão
quando veio a bomba
– papai morreu
vestida de rosa e bolinhas amarelas até o tornozelo
vovó se levantou
subiu no banquinho em frente à pia
esticou-se para alcançar o pó de café guardado no armário
e disse lentamente
enquanto colocava a água para esquentar
– calma, lucinha. nós já vamos vê-lo
entramos no landau azul
chumbo
e logo imaginei meu pai da mesma cor do carro
algodãozinho no nariz
terno preto
gravata fina
mas quando chegamos ao porão
em que meu velho tinha dormido para sempre
quase caí para trás
meu pai estava enforcado
mas não era um morto qualquer
caído
frouxo
flácido
ele morreu enforcado
em um quarto colorido
cheio de brinquedos
vestido de palhaço
e com milhões de bexigas amarradas no pé esquerdo
tantas
mas tantas
um exército de bolinhas cintilantes
que puxava o corpanzil de 120 quilos pelo tornozelo
em direção ao céu
e só não o levava para a lua
porque a corda amarrada ao pescoço
insistia em fazê-lo flutuar de ponta cabeça
meu pai morreu enforcado
espelhado
ao contrário
invertido
ele sempre me surpreendia
aquele bandido
até na morte tinha que fazer palhaçada
deitei no carpete cinza
olhei os cabelos feito morcegos ao meio-dia
e adormeci com o cheiro forte de café que inundava o ar
*
Benito, 87, acende uma vela
pensam que não percebo o cochicho pelas costas, mari
besteira
eu mesmo fechei a gaveta, lembra?
falam que não aceito bem
só porque seu perfume virou álcool na prateleira
os bombons apodreceram nas embalagens
e o xampu para cabelos tingidos
há anos venceu no banheiro de cima
querem jogar tudo fora
mas mal sabem eles
que você nunca vai deixar
sempre odiou quando mexiam nas suas coisas
era só alguém abrir o armário do quartinho
e seus olhos logo chiavam
feito cebolas nas panelas de domingo
imagine se vai autorizar que
todos os casacos
livros guardados em saquinhos
crochês em moldura dourada
fitas vhs com aulas de ioga
o álbum da viagem à espanha
a coleção de batons
é o que chamam de tralha
acredita?
sejam descartados
em sacos de lixo preto
deus me livre
não quero que puxe meu pé à noite
*
Bruno Molinero é jornalista e escreve para a Folha de S.Paulo. Foi vencedor do prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog, e representou o Brasil no World Event Young Artists, na Inglaterra. Os poemas são de seu livro de estreia, Alarido (ed. Patuá), que venceu o prêmio Guavira de Literatura em 2016